Renato
Bernhoeft*
Prezado
Fundador,
Para você
que já não voltou mais da U.T.I. daquele hospital onde nos vimos pela última
vez, e de lá partiu desta sem encaminhar a sucessão da empresa que você fundou,
esta carta chega atrasada.
É
lamentável, mas de qualquer forma quem sabe ela possa ser útil para outros
empresários que ainda estão vivos, correndo de um lado para outro, sem dar-se
conta dos riscos que também correm sua saúde e, por extensão, sua família e a
empresa. É evidente que foi uma surpresa para todos, pois com a saúde que você
sempre teve não se poderia esperar um desfecho daqueles. Mais ainda porque
justamente naqueles dias você estava programando umas férias com a família,
fato que era uma novidade para todos.
Lembro-me
sempre das nossas conversas quando você afirmava categoricamente que
"doença e filho drogado eram problemas que só ocorriam na família dos
outros". Eu apreciava e, porque não dizê-lo, até invejava aquela sua
autoconfiança, pois ela transmitia segurança ao seu pessoal, embora em alguns
momentos inibisse as reações de sua esposa e filhos.
A imagem
que você em vida nos transmitiu, de onipresença, onipotência e rapidez nas
decisões contrastava com as cenas que presenciei em seu velório. Aquela mesma
força que nos unia durante a sua vida era agora o fator que nos separava. Já
era possível perceber os primeiros indícios de lutas pelo poder por áreas em
que você nunca quis tomar decisões, pois eram assuntos de sua exclusividade. Lá
estavam seus filhos, genros e noras criando algumas situações constrangedoras
para sua esposa, pois discutiam quem ficaria com o quê. Por alguns momentos,
inclusive, se referiam a você de uma maneira pouco recomendável para quem
estava sendo velado. Eram manifestações do tipo: "O velho foi sensacional,
mas agora nos deixou tudo para resolver". "Ele deveria ter feito a
divisão ainda em vida". Ou, ainda: "Ele achou que
jamais morreria, razão pela qual nunca quis tratar da sua sucessão. “Agora, sem
a participação dele vai ser mais difícil”. Em outro ambiente, acotovelavam-se
os "velhos de casa" que, nesta altura, se julgavam plenos de direitos
ou deserdados, conforme a situação pessoal de cada um. Alguns daqueles que
sempre desfrutaram das simpatias e preferências estavam agora apreensivos. Os que
sempre mereceram o seu desprezo mantinham um olhar de expectativa positiva.
Procurando
resumir, diria que se não fosse uma situação de dor e trágica, você mesmo
provavelmente estaria se divertindo com aquilo que estava provocando com as
pessoas que conviveram boa parte de suas vidas a seu lado. Toda aquela cena era
um testemunho muito intenso da sua incapacidade de lidar com uma visão de
empresário que desenvolve um empreendimento que ultrapassa sua própria
existência.
Acredito
que ainda devem estar vivas na sua memória as lembranças de nossas conversas
sobre a importância que você se convencesse de que uma empresa deve ultrapassar
os limites do seu fundador pois, do contrário, ela não poderá ser considerada
uma empresa, mas um negócio pessoal. Entre ambos existem grandes diferenças.
Uma empresa se mantém pela existência de uma filosofia organizacional que
perdura ao longo dos anos e a torna bem sucedida. Um negócio pessoal é apenas
algo como a tentativa de assegurar um futuro tranquilo e um pecúlio para a
viúva. Sei perfeitamente que seus ideais eram mais amplos. Gerador de empregos,
compromissos com a comunidade e outros itens faziam sentido para você. O que
dificultou foi apenas o fato de que na sua opinião essas preocupações poderiam
ser adiadas para quando "a empresa estivesse redonda". Hoje a gente
já sabe que jamais uma empresa está pronta. Ela é uma dinâmica constante, pois
quando for considerada "redonda" deve estar obsoleta.
Estou agora
recordando uma frase que você gostava de usar ao definir sua empresa: "Uma
empresa como a minha é, essencialmente, um ideal que deu certo". E era
verdade. O início foi duro, pois tudo o que havia era apenas um ideal com muita
persistência e garra. Faltavam recursos. Os amigos, a família, os banqueiros,
os clientes e os fornecedores não acreditavam no empreendimento. Só você e dois
abnegados companheiros seus puseram toda energia e fé no negócio.
Foram
dias difíceis. Não havia domingo, férias ou qualquer insinuação de querer
desfrutar algo das conquistas. Mas foi algo maravilhoso. A família sentia falta
de você, mas lá estava sua esposa tratando de compensar sua ausência.
O tempo
passou e os negócios cresceram. Mas, apesar de tudo isto, o que ainda se mantinha
ao longo de todo este tempo era a incapacidade de desfrutar suas próprias
conquistas. Era uma utopia pensar que algum dia você iria parar e começar a
descansar, viajar, compartilhar mais tempo com a família e amigos. Sua vida era
voltada para o trabalho, pois ele era a própria razão da sua existência. As
poucas oportunidades de algum lazer foram consideradas, da sua parte, apenas
como uma maneira de recuperar energias para voltar ao trabalho. Muito menos
qualquer abordagem de sucessão que implicasse no afastamento gradativo de sua
atuação direta nos negócios, ainda que ele implicasse num novo desafio em outra
atividade.
Bem, acho
que já chegou o momento de encerrarmos nossa conversa, pois estou sendo chamado
para mais uma reunião dos seus herdeiros para discutir os destinos da empresa
que você fundou.
E a
julgar pelas últimas que tivemos, vai ser mais uma experiência de confrontos
emocionais e jogos de interesses.
Alias, é
interessante que, apesar da ausência e impossibilidade de participar, sua presença
é constantemente mencionada como algo que seria indispensável.
Confio
que tudo continue bem com você, seja lá onde estiver. Apenas recomendo que,
caso você esteja com ideias de criar novas empresas neste novo mundo, tome
apenas o cuidado de tratar da sucessão ainda em vida. Pode ser dolorosa, mas,
com certeza, dará maiores garantias para o seu próprio sucesso.
Afetuosamente,
Alguém
que acredita no sucesso da empresa nacional.
*
Consultor de empresas, presidente da Bernhoeft Consultoria, membro do FBCGI -
The
Family Business Consulting
Group
International na América Latina.
renato@bernhoeft.com
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