Roberta Machado -
Publicação: 01/07/2013 10:38 Atualização: 01/07/2013 10:41 Brasília – Há quem acredite que o alquimista Nicolau Flamel desenvolveu e guardou para si a habilidade de transmutar metais em ouro. A história, datada do século 14, não deixou provas e ganhou ares de lenda. Quase 700 anos depois, cientistas do Japão, da Finlândia, da Alemanha e dos Estados Unidos apresentam uma técnica de transformação de materiais que também tem jeito de mito, mas é muito real. O grupo de pesquisadores conseguiu transformar cimento em um material que mistura propriedades de metal e vidro. E, em vez de um livro misterioso ou da pedra filosofal, os “pesquisadores-alquimistas” do século 21 contaram com um poderoso laser.
A proposta de usar a ciência para realizar o que parece um truque de mágica surgiu no Japão, no Instituto de Pesquisa de Radiação Síncrotron, também conhecido como SPring-8. O lugar é sede de grandes experimentos que submetem materiais a condições extremas, resultando no desenvolvimento de medicamentos, informações sobre o planeta e, claro, em formas inéditas de materiais.
A equipe usou como referência um trabalho publicado há dois anos, pelo pesquisador Hideo Hosono, do Instituto de Tecnologia de Tóquio. Em 2011, o japonês divulgou na revista Science a estrutura de um tipo de vidro fabricado em laboratório que logo deu origem a diversas patentes de fabricação – de eletrodos a telas planas. Mas pouco se sabia sobre o fenômeno que havia resultado no material. “Nossa contribuição é desvendar o mecanismo microscópico da transformação desses materiais de cimento em vidro metálico. A possibilidade de refinar estruturas eletrônicas de vidros vai abrir uma porta para o desenvolvimento de novos materiais”, explica Shinji Kohara, pesquisador o SPring-8 e principal autor do novo trabalho, que descreveu a fabricação do vidro metálico na revista especializada Proceeding of the National Academy of Sciences (Pnas).
O laboratório japonês iniciou uma parceria com
pesquisadores de todo o mundo para desenvolver uma técnica que
permitisse a observação da transformação do material e a análise dos
resultados a nível atômico, por meio de um supercomputador. Para isso,
eles usaram um composto chamado aluminato de cálcio, presente no cimento
comum. O material foi bombardeado com lasers de dióxido de carbono a
mais de 2.000 0C, sob diferentes pressões.
Durante o
procedimento, o material foi mantido suspenso com um levitador
aerodinâmico, que garantiu que a matéria não formasse cristais em
contato com a superfície. O jato de gás sustentou o metal de forma
similar à que um secador de cabelo pode fazer com uma bola de isopor. A
matéria em transformação se cristalizou no ar na forma de um material
híbrido, com a estrutura moldável do vidro e as propriedades condutivas
do metal.
Para criar o metal amorfo, os pesquisadores
recorreram a um processo chamado captura de elétrons. As partículas, que
são “roubadas” do titânio usado durante a transformação, ficam
aprisionadas em estruturas formadas pelo vidro, criando um caminho
condutor semelhante ao que acontece em metais.
“É como se houvesse
inúmeras caixinhas com elétrons. E quando há uma diferença de potencial,
esses elétrons são liberados, e (o material) passa a ser condutor. Se
os elétrons vão de caixinha em caixinha, você tem a condutividade que
não tinha no cimento”, ilustra Elson Longo da Silva, professor de
engenharia de materiais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
Até
então, o processo só havia sido observado em soluções de amônia. Mas
agora a técnica pode ser mais bem compreendida e adaptada para uso em
outros tipos de materiais sólidos. “Isso abre toda uma área para o
desenvolvimento de novos materiais”, enfatiza Chris Benmore, físico da
Divisão de Ciência de Raios X do Argonne National Laboratory, em
Illinois. “Podemos tentar reproduzir isso em outros materiais e talvez
até realçar isso no design de novos tipos de materiais, que têm
propriedades muito estranhas”, anima-se o pesquisador.
Um pouco de cada
As
propriedades e a técnica de fabricação são tão incomuns que até mesmo
os pesquisadores envolvidos na criação do vidro metálico têm dificuldade
para compará-lo com materiais já presentes no cotidiano. “Ela muda para
uma cor diferente. É vidro, na verdade. Então, é basicamente um líquido
temperado para formar vidro sólido, não muito diferente do que você
usaria para beber, mas na verdade ele é preto, e tem propriedades muito
diferentes depois que atinge esse estado do que normalmente teria em uma
loja comum”, tenta descrever Benmore.
O metal híbrido tem
também uma resistência à corrosão maior que o material tradicional, é
menos quebradiço que o vidro comum e acumula vantagens como a baixa
perda de energia em campos magnéticos e a boa fluidez no processo de
moldagem. “O cimento é refratário. Isso significa que ele não conduz
energia térmica nem eletricidade. Eles partiram de um sujeito com uma
propriedade e o transformaram, num giro de 180 graus. Isso abre novas
perspectivas científicas. O pessoal descobriu algo extremamente
interessante”, enfatiza Elson Silva, da UFSCar.
Os
pesquisadores ressaltam ainda vantagens do novo material: a
matéria-prima é abundante e de baixo custo, e a versatilidade da
invenção pode levá-la a diferentes aplicações, que só dependem da
popularização da técnica usada – ainda cara e pouco compreendida. O
material criado em laboratório pode ser usado na fabricação de chips,
células de combustível, filmes protetores e até mesmo como componente de
telas de cristal líquido, como as usadas em dispositivos móveis e em
computadores.
http://www.em.com.br/app/noticia/tecnologia/2013/07/01/interna_tecnologia,414987/cientistas-transformam-cimento-em-material-que-mistura-propriedades-do-vidro-e-do-metal.shtml